2 de junho de 2008

O Eu e Nada

De repente você se dá conta que virou outra pessoa.
Outro dia mesmo você se definiu: eu gosto disso, odeio aquilo, fulano é o amor da minha vida. Jamais faria assim, sempre reajo assado quando fazem determinada coisa. Mas será que é tão importante assim definir o que se é?

Hoje eu olhei para dentro de mim e não me reconheci, o que encontrei não correspondia à cartilha.

Bem, a realidade não é exatamente o que se traduz na linguagem. Tudo que nós achamos ou temos certeza está baseado em convenções, convenções de denotação, semântica, sintaxe, lógica e medidas. Eu poderia dizer que se eu mudei, e que, portanto, era algo de um jeito e agora sou alguma coisa diferente daquilo, ainda suponho que haja um 'eu' que se mantém. Afinal, ainda estou aqui para falar sobre o que eu era mas não sou mais. Só não creio que analisar a lógica das coisas que afirmamos necessariamente torna a conclusão correspondente ao que é real. O que eu penso que sou ou que defini para ser eu, é tão achismo quanto é o de quem diz que somos assim ou assado. O homem é um animal habitudinário, não é mesmo? Mas não acontece de você surpreender alguém, para o bem ou para o mal, uma vez ou outra? Pois que às vezes podemos surpreender a nós mesmos.

Creio que pode-se dizer que cada ser humano é um composto orgânico em atividade homeostática. Você é aquilo que está sendo enquanto é (credo!). É a experiência disto, a história factual disto. Também é a história romanceada que o composto orgânico em atividade homeostática produz em forma de memória, seja isto você ou outro. Você, ou seja, seu corpo, cria hábitos na forma de atitude e de interpretação do mundo. Vejo a razão como fenômeno natural nos seres humanos, assim como os demais animais fazem o que fazem naturalmente, ainda que o conhecimento seja transmitido de forma muito mais complexa entre os homens.

A pessoa cresce, tem uma série de acontecimentos únicos combinados dentro de si que resultam num ser "distinto". São únicos porque os seres ocupam lugares diferentes no espaço, de modo que terão necessariamente um ângulo de visão diferente, fisicamente falando. Assim como subjetivamente, pois o cérebro de cada um interpretará os fatos de acordo com aquilo que a memória guardara e a inteligência organizara. Mesmo seres como, por exemplo, os insetos que, suponho, não tem consciência de si, existem, modificam o espaço e a história, têm a sua própria história factual (nasceram em tal lugar, em tal momento, antes, depois e durante alguma coisa); e mesmo que não tenha ninguém narrando os acontecimentos de sua existência, ele está lá. Os homens também são quem são independente de ter alguém registrando sua história. Se todas as pessoas perdessem a memória ao mesmo tempo, isso não mudaria tudo o que aconteceu antes. Bem, naquilo que você é, há uma capacidade de organizar o mundo de modo quese possa até manipulá-lo. Você supõe, através de observação, que A → B, ou que x se segue de y. No que concerne à ciência, é quase sempre batata! Ainda que, seguindo o filósofo Hume, essa ligação entre fatos é coincidência, e nada garante que amanhã o sol vai realmente aparecer do mesmo jeito que todos os dias anteriores desde que as coisas passsaram a serem assim. Com as pessoas é semelhante, diz-se que ao comer comida estragada, passa-se mal, e é quase sempre assim, mas não necessariamente. Acreditamos, por diferentes motivos, e tal pessoa é desprezível e vai causar mal estar na festa, e no entanto ela se mostra maravilhosa e todos a adoram! Os sentimentos podem mudar tanto que às vezes até parece-me banal. Mas faz parte do ser humano agarrar-se a certezas: isso vai acontecer! Fulano agirá assim! Eu sou desse modo!; a manipulação dos conhecimento gerados acerca das coisas que se repetem é importante para a sociedade, mas não é uma verdade absoluta. Ter conhecimento da incerteza de nada é algo agonizante - o próprio tempo é uma convenção; há quem diga que tudo ocorre ao mesmo tempo, que tudo está acontecendo, e que a sucessão temporal é o modo como nossos cérebros têm para filtrar a realidade e tentar compreendê-la!

Desse modo, nos afastamos cada vez mais do que pensamos ser. Não nasci no dia 23, quem vem depois do 22. Setembro não existe, nem o ano 2008. E o modo misterioso no qual as pessoas vivem na memória coletiva - um músico, um escritor, uma personagem histórica, sua avó...-, mesmo quando o referente orgânico já se desfez? Isso faria sentido, realmente, se não houvesse passagem do tempo. Pois que apesar da minha mente entender que minha avó era divertida e, contudo, não posso mais tocá-la porque seu corpo não existe mais, sua memória é sua existência atual, pois na não-passagem do tempo, ela e eu coexistimos.

Apesar de toda essa reflexão filósofo-biológica, como poderíamos aplicar a susposta compreensão da realidade última à realidade imediata? Afinal, o processo neurológico do meu corpo prosseguirá suas análises, armazenará modelos cognitivos e premeditará acontecimentos. Continuará a concluir que sou tal adjetivo, e que uma outra pessoa é outro adjetivo porque ela afirma gostar de determinada coisa. Talvez a vantagem esteja em ser ator e platéia de si mesmo. Você e eu continuaremos vivendo, mas eu posso me afastar virtualmente - até certo ponto - e ver nossa existência sem adjetivos e implicações. Um puro contemplar. O meu eu se torna algo tão misterioso e ao mesmo tempo tão compreensível, que obviamente não posso expressar em palavras, pois elas serão sempre cortes da realidade. Parece com o que se diz sobre Deus - não no sentido do princípio que tudo rege, mas na simplesmente existência não-temporal e não-adjetivável.- Será que, no fundo, os homens compreendem a realidade última e a denominam de Deus?

Para mim, a importância desse tipo de reflexão é concluir que não: definir o que se é não é tão importante assim. Na sociedade, no momento em somos atores, agrupamo-nos de acordo com o que nos interessa, agimos de acordo com os objetivos que escolhemos e andamos na linha do tempo que traçamos. Contudo, é a certeza ou ainda a certeza nenhuma de não ser aquilo que se definiu que é importante, é o que se deve descobrir quando se olha para dentro de si - e eu sei que não sou a única a sentir isso e, então, como um bom ser humano, universalizo -, ter a consciência sentida e não-verbal que é o não denotar.

(é o nada. O nada cheio de existência. é o Deus vazio de sentido e cheio de ser, São apenas maneiras de tentar falar sobre essa compreensão)

Um comentário:

  1. Aninha:
    Li. É muita coisa junta. Teríamos que abordar por partes e, creio, não cabe aqui nesse espaço. De qualquer forma isso é filosofar. Poderemos, conversando com o teu texto em mãos, comentar, comentar, comentar.É quase certo que tenho alguma poesia sobre as tuas dúvidas, ela deverá ter sido escrita sobre alguma dúvida minha. Provavelmente não a resolveu.
    De qualquer forma, a filosofia procura, procura.
    PS. Podemos evitar essa hipótese:Deus. Torna tudo mais sincero.
    Abraço Sá

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